domingo, 1 de agosto de 2021

"Crónicas de Allaryia: A Oitava Era", de Filipe Faria. | Que grande Farinheira

Caramba, custou mas foi, terminei o último livro das Crónicas de Allaryia (até agora, acho que li algures que este segundo ciclo vai ser uma trilogia). Apenas o consegui fazer porque sou teimoso e vou ter de o continuar a ser para ler os seguintes.

Entretanto, finalmente consegui adquirir o primeiro volume das Crónicas de Faelgar, portanto a minha "viagem" pela fantasia portuguesa irá seguir por esses reinos. (Se bem que o livro ainda não chegou... tenho esperanças que chegue amanhã).

Mas vamos lá... a esta grande farinheira.

 

**Aviso: O texto que se segue pode conter spoilers e uma considerável quantidade de sarcasmo.**

**Aviso 2.0: Tudo o que se segue provém da minha opinião pessoal. Ou seja, não têm qualquer valor para ninguém que não eu.**
 

 

 Ai mãezinha do céu e da terra, por onde começar? Passaram-se uns quantos anos desde que o autor escreveu dentro do mundo de Allaryia... e parece que conseguiu manter-se consistente, tanto no tipo de escrita, como no "ambiente" do mundo de Allaryia. Agora... será isto algo positivo? Depende. Para alguêm que gostou de todos estes aspectos no "ciclo I", vai sentir uma grande familariedade neste novo volume. Para mim? Bem... tinha esperanças que algo tivesse mudado durante os anos em que Filipe Faria esteve afastado de Allaryia, mas vejo que, infelizmente para mim, tudo se manteve.

Desde o narrador confuso e inconsistente, até às descrições extremamente detalhadas, os problemas que menceinei nas "rants" anteriores estão cá todos presentes e em força.

Começando por algo mais geral. Acho que o livro (o autor) foi indeciso no que toca ao público do livro. Acho que tentou agradar a potenciais novos leitores, como aos que já tinham lido os outros livros. Por exemplo, sinto que se perde imenso tempo a explicar o que aconteceu nos livros anteriores, o que ajuda quem vai começar a ler por aqui. Mas depois o livro nem sequer tem um mapa... ou seja, para o leitor se localizar, tem de ir buscar um dos outros livros. Se é suposto ter-se os outros volumes à mão, então vais vale cortar todos os parágrafos de "recap".

Ainda dentro da mesma ideia, mas agora indo ao promenor. Os alfanges do Kror, bem como o próprio, foram descritos ao detalhe nos volumes anteriores. Voltam a ser descritos aqui, uma... duas... três... várias vezes! É algo que o narrador enuncia cada vez que o Kror aparece! Mas porquê? Basta descrever uma vez, que eu já fico com uma ideia do aspecto da personagem, o que me escapar/esquecer, vou atrás consultar, ou então a minha imaginação preenche essa lacuna. E já lá vamos a isso da imaginação, mais para a frente.

Desta vez, dei-me ao trabalho de tipografar alguns excertos do texto, só para dar um pouco mais de enfâse a este ponto. Veja-se, a titulo de exemplo, algumas descrições do Kror:

 

Capítulo 5:

 p. 89:

" (...) Homens, mulheres e crianças gritaram ao verem abrir-se um par de asas com nervuras rígidas e veios cor de sangue coagulado, cujo padrão tanto fazia lembrar o de uma traça como aterrorizava com as imagens com as imagens de chacina e carnagem que evocava e nele se pareciam mexer. Dois pontos safirinos luziram no semblante ensombrado da criatura, um horror de pele negra marcada por extensas cicatrizes e rasgada por excrescências quitinosas vermelhas nos ombros, joelhos, cotovelos e nós dos dedos. Uma juba negra lisa, que fazia lembrar os pelos espiculados de uma larva, eriçou-se, e uma armadura de couro preto esfarrapada rangeu com o retesar de músculos quando ela empunhou dois alfanges aos seus lados, duas lâminas dissimilares mas cujos gumes pareciam igualmente sedentos de sangue.  "

p. 91:

" O pensamento incomodou Kror, que arreganhou os dentes de caninos afiados e fez com que as quelíceras em forma de pinças nas suas comissuras se relevassem elas também. As placas quitinosas na sua testa franziram-lhe ainda mais o cenho, mas os pontos azuis nas poças negras que eram os olhos do drahreg pareciam recusar-se a deixar transparecer tal emoção. (...)"

p. 92.

" Uma das armas tinha um pomo prateados cravejado com uma safira polida, um punho outrora enfaixado com fio azul-turguesa, que entretanto se desenredara e degradara, e copos argênteos em contracurva e com gravuras sinuosas neles cinzeladas, também eles com gemas azuis encastoadas nas pontas. A outra tinha o punho igualmente exposto, com tecido vermelho que o revestia pelado, um pomo preto incrustrado com um grande rubi e copos negros escabrosos decorados com pedras rubiáceas facetadas. A lâmina curva de um era fresada com elegantes linhas sinuosas, ao passo que a outra o fora com traços mais elegantes e fragosos (...)"


Capítulo 10:

p. 166:

"O jovem wolhoyno nunca vira um drahreg na sua vida, mas tinha ouvido histórias suficientes para julgar que este pudesse ser um,  a avaliar pela sua pele negra mortificada por inúmeras cicatrizes, mas as excrescências quitinosas vermelhas que lhe rasgavam a carne nas extremidades, as placas na sua testa e a juba negra eriçada como os pelos virosos de uma larva em nada correspondiam às descrições com que estava familiarizado.

Uma armadura de couro preto esfarrapada parecia fundida ao seu corpo e a ele afixada pelas excrescências que a atravessavam, duas quelíceras em forma de pinças agitaram-se esfomeadas nas comissuras da sua boca de afiados caninos arreganhados, e os dois vistosos alfanges que empunhava pareciam afiados o suficiente para cortar o fio pelo qual a sua vida estava... mas, no entanto, o monstro não avançou para o golpe mortal. 

Os seus olhos, duas safiras em covas de trevas, estavam fitos em Mørvełd; (...)"


p. 167.

" O negrume em redor das safiras que eram os olhos do drahreg expandiu-se, (...)

Porém, o súbito estalo do eriçar das asas do drahreg reteve-os a todos, formando uma tela de morte agonizante delineada por veios cor de sangue coagulado e emoldurada por nervuras negras e espinhosas."



Capítulo 12:

p. 210:

" Mesmo visto de trás e com as asas recolhidas, poupando-o assim à visão dos medonhos padrões que evocavam e prometiam morte e agonia, o drahreg era uma visão impressionante. Excrescências espinhosas avermelhadas irrompiam-lhe do que restava da sua armadura de couro negro esfrangalhado, concentrando-se nos ombros e ao longo da coluna vertebral; algumas delas tinham-se partido ou rachado, e havia rasgões que talvez tivessem sido causados por outros ferimentos e que revelavam a fusão entre carne preta e quitina cor de sangue venoso debaixo da vestimenta. As nervuras das asas recolhidas eram como um par de hastes quitinosas que oscilavam de um lado para o outro, tensas e aparentemente prontas a estalar a qualquer momento para se abrirem em toda a sua terrífica envergadura.

Embainhados entre elas estavam os alfanges com que o drahreg facilmente matara vários dos seus companheiros. Tinham punhos incrivelmente vistosos, mesmo o das pedras rubiáceas, que era mais agressivo à vista, ambos obras-primas que Tordar não podia deixar de apreciar, mesmo com o seu olhas destreinado e mesmo na situação em que se encontrava. O das pedras azuis não era decididamente arma para tal monstro, embora a cor das pedras fosse perturbadoramente parecida com a das íris do drahreg, coisa que o jovem wolhyno também nunca ouvira falar, embora nunca tivesse visto um membro do Primeiro Pecado ao vivo antes daquele."


Haja um pouco de misericórdia, por favor. É que, quase sempre que uma "nova" aparece, é descrita ao pormenor! O que, aliado à trapalhice de POV's do narrador, significa que, por exemplo, o Kror é descrito pelo narrador; depois o Kror é descrito quando é visto pelo Todar; depois o Kror é descrito quando é visto pelo Todar, mas desta vez de costas.... caramba tanta descrição da mesma coisa! E aproveito esta deixa para saltar para as descrições.


Cum caraças! Cada figurante que aparece é descrito ao pormenor, cada detalhe do cenário ou paisagem! Maior parte destes detalhes são completamente irrelevantes. Se ainda fosse algo do género: "ela tinha um vestido verde, com dois grandes botões dourados em cada punho" e depois, seja o vestido ou os botões servissem para alguma coisa, ainda perdoava. Mas quase todas as descrições são inúteis. Apenas o resultado da rica imaginação do autor... o que poderia ser algo positivo, se a imaginação do autor não matasse a imaginação do leitor. Este livro, tal como os restantes são completamente "tell" e nada de "show". Da tal tão famosa diretriz do "show, don't tell" ou "mostra, não contes" (minha tradução... não é lá grande coisa). Para ler este livro, o leitor tem de basicamente desligar o cérebro... aquela coisa que fazemos quando vemos os filmes de Sábado à tarde na TV (apenas pessoal idoso, como eu, é que se lembra... hoje em dia é só, como diz a minha avó com grande satisfação, "programas bonitos").

Enfim o livro não deixa nada à imaginação, desde o cenário, ao vestuário, às expressões/gestos das personagens... tudo a um extremo. Até as expressões, muitas vezes são alvo do mesmo processo descritivo que as cenas de luta. Em vez de algo como: "a Fortunata sorriu", é algo como: "os lábios da Fortunata abriram-se e os seus músculos das bochechas puxaram os cantos da sua boca para cima, mostrando os seus dentes brancos, com a execução do incisivo direito, que era de madeira, pois esta tinha levado com uma panela nada cara, quando tinha 22 anos, como castigo por não ter deixado o gelado ao lume o tempo necessário para ferver". Depois de tal descrição a Fortunata não volta a aparecer, pois era apenas uma figurante que se cruzou com uma personagem... por acaso. Agora imagine-se um livro cheio de tais descrições. Eu digo... o Filipe Faria tenta superar os Maias, do velho Eça de Queirós. E lá vamos nós às cenas de luta, que felizmente não são tão frequentes neste livro como nos anteriores, mas mesmo assim. Acho que o cúmulo das descrições de cenas de luta pode ser exemplificado com a última luta de Slayra com... sei lá, com um gajo qualquer que lhe fazia "olhinhos" quando ela passava, um personagem completamente irrelevante, contudo, este desafio final para a personagem começa na segunda metade da página 357 e termina para lá de segunda metade da página 359 (digamos, cerca de duas páginas e picos...). Não é das lutas mais longas do livro, contudo é basicamente irrelevante, podia tudo ser reduzido a meia página! Tal como já disse em rants anteriores, a descrição de cada movimento de uma luta é o mesmo que ver um filme de ação em slow motion... estraga completamente toda a tensão da cena.

Vamos agora ao narrador e aos POV's... que trapalhada! Continua o mesmo, se não pior. Até hoje, ainda não consegui descobrir que tipo de narrador é este! Tanto é omnipresente, como não, tanto é subjetivo como objetivo... Penso eu! Porque é uma confusão pegada, muitas vezes não sei se o narrador está a descrever do ponto de vista de uma personagem, se está simplesmente a descrever, ou se já está a descrever segundo uma outra personagem, tudo se pode alterar com uma mudança de parágrafo! Para agravar, maior parte dos capítulos são muito longos, o que resulta em assim uma dúzia de POV's diferentes, com o narrador à mistura, dentro de um capítulo. 

Ligado a isto, e também mencionado anteriormente, está a problemática de quer mostrar tudo o que está a acontecer. Temos sempre os dois lados de um conflito, o que não é totalmente algo negativo, outros autores fazem o mesmo (por exemplo o George Martin - ena... fica estranho sem o R. R. no meio não?). Contudo, nas Crónicas de Allaryia, este aspecto destrói todo o suspense do enredo. Por exemplo, nos últimos dois capítulos, toda aquela trapalhice e conflito apanha as personagens de surpresa e desprevenidas. Mas o leitor já sabe de tudo o que se está a passar... em capítulos anteriores tivemos num semi-POV (ou seja lá o que isto é), de personagens figurantes a ver os "maus da fita" a prepararem toda a traição. Depois, todo o impacto, mistério e intriga torna-se numa repetição, tendo, como única novidade, as reações de alguma personagens. Não seria melhor o leitor ser impactado com as reações das personagens, juntamente com a sua própria reação ao desvendar de uma trama? Mas o livro não deixa nada escondido... é um "livro aberto"... senta, lê, e desliga o cérebro.

Ainda no mesmo seguimento, muitas vezes sinto que o texto foca-se em aspectos irrelevantes, enquanto algo que poderia ser bem mais interessante acontece "fora de cena". Por exemplo, toda a conversa e negociação entre Aewyre e Nishekan podia ter sido muito mais explorada, quase não houve negociação nenhuma! Não vimos resistência, argumentação e contra argumentação de ambas as partes! Isto podia ter dado um capítulo longo, apenas naquela sala, com a personagens a discutir. Uma excelente oportunidade para desenvolver e explorar na integra cada personagem e os seus ideais. A negociação até podia ocorrer ao longo de vários dias! Contudo, parece-me que não houve grande negociação... apenas alguma tensão devido a quem as personagens eram e pelas suas conceções do outro, e depois a cena é saltada para um outro subplot qualquer, onde lê-mos sobre um personagem secundário a passear pela vila... Ou seja não há tempo para explorar uma negociação a fundo, mas depois perde-se páginas e páginas a descrever uma luta. Enfim...

 De mencionar também algumas inconsistências, novamente devido ao narrador, fiquei sem perceber como funcionam as armaduras, por exemplo:

Capítulo 13, p.229:

"- Quenestil - chamou a atenção do seu amigo, indicando-lhe com um gesto da cabeça que ficasse a vigiar o Aeshálan.

As três armaduras da Hoste Dourada acusaram com um ligeiro ranger uníssono a ordem mental a transferir o comando para o eahan, que nutou e recuou um passo, levando a mão ao punho do facalhão que trouxera para a cripta.

 

Capítulo 15, p.262:

"Aewyre não tinha como transferir o comando para outros, mas podia ordenar-lhes que protegessem quem ele designasse, e que obedecessem a certos sinais predeterminados."

Então pode ou não pode transferir o comando? O narrador sabe tudo, mas confunde-se? Muda conforme a conveniência à história... confusão.


Avançando, talvez devesse ter começado por aqui. Qual é o público alvo deste livro? É que toda a estrutura, constante repetição de descrições e a forma como algumas personagens são representadas, quase me indicam que é para crianças. Mas depois têm cenas sexualmente explícitas (que honestamente não fazem sentido nenhum, é a mesma coisa que as cenas de luta, descrição até ao exagero). Talvez seja apenas mesmo para adolescentes, que, tal como o livro, não sabem bem o que querem, nem o que são. (Digo isto, mas eu sou velho e também não sei).

Sinto que o autor tentou agradar a todos, até porque a personalidade das personagens não corresponde às suas idades. Se eu não soubesse a idade dos "miúdos" (filhos das personagens), eu diria que se encontravam entre os 15 e os 16 anos. Agem como crianças, (com corpos sexualidades pelas descrições do narrador), e são tratados como crianças pelos pais. Contudo, pelo que percebi, tem entre os 20 e 21 anos... Tipo... não tenho palavras para isto. Já não sei o que mais dizer. Eu pensava que o foco deste novo ciclo iriam ser estes personagens mais jovens, contudo são basicamente personagens secundários, importantes para o enredo, mas sem acção própria. São os personagens antigos que movem a história... "movem"... aí está outro problema! 

É que o enredo quase não avançou nada, neste primeiro livro do ciclo II. Passámos grande parte do texto a recapitular o que aconteceu nos livros anteriores, a descrever tudo ao pormenor (por vezes descrevendo o mesmo aspecto várias vezes), e a empatar tempo em enredos antigos. Por exemplo, o enredo do Kror querer matar o Aewyre... caramba já passámos uns quantos livros com isso, agora temos de levar novamente com a mesma coisa outra vez? Acho que, focando-se apenas no enredo relevante, cortando nas descrições excessivas e mesmo explorando mais alguns aspectos, seria possível fazer uma nova versão deste livro em 100 páginas, ou menos (livro tem 389).

Um, "à parte", que me lembrei agora e porque me recuso a fazer scroll para cima e meter isto em outra parte do texto.  O facto de Kror precisar do Todar para encontrar Aewyre é um pouco ridículo. Então ele foi atrás do Aewyre pelo mundo fora, e depois foi arrastado por ele até Ul-Thoryn, onde morreu e etc. Quando Todar responde a Kror, refere-se a "Lorde Aewyre"... será "lorde" de onde?  Lorde de Castelo de Vide? Ou será lorde daquela cidade onde o irmão dele era rei ou assim? (Sim não é bem na cidade... mas o Kror facilmente o encontraria). Portanto é apenas uma desculpa para juntar os dois personagens. Isso ou o Kror apanhou alguma variante de alzheimer, que em Allaryia transmite-se mais que a variante delta do Covid-19... pois eventos de 20 anos atrás são tratados como se tivessem ocorrido à 200.


Enfim... comecei a escrever isto às nove da noite, e já são vinte para a meia noite (com algumas interrupções pelo meio). Portanto vamos começar a fechar a loja. 

Primeiramente (no fim), caso o Filipe Faria leia este texto (nunca vai acontecer, ninguém visita este blog - também não faço por isso - para além de mim e do meu "amigo" do Nepal que ocasionalmente me tenta vender máquinas de lavar roupa em hindu), não quero que se desmotive. Epá, eu não gostei muito, mas isto é apenas a minha opinião, que vale o que vale (mas atenção que eu tive um tetravô que, segundo o próprio, era o rei do mundo). Continua a escrever o que gostas e a publicar livros. Somos tão poucos e tão pequeninos neste nosso paralelepípedo encalhado à beira mar, que não podemos estar uns contra os outros. Força, continua em frente, que eu cá estarei para apoiar e refilar, tal como o Worick o fez ao longo de todos os livros.

Não me importei muito com a morte do Babaki... era cedo demais para eu me ralar com o bichano. Agora o Worick doeu, pedras me partam.... 

E esta é para doer também, oficialmente vou dar a este livro um 2/5. Desiludiu-me imenso. Contudo, no goodreads, vou dar um 3/5, por camaradagem.  E vou mas é para a caminha...


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